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*Nota de editor:* Devido à quantidade de erros tipográficos
existentes neste texto, foram tomadas várias decisões quanto à
versão final. Em caso de dúvida, a grafia foi mantida de acordo com
o original. No final deste livro encontrará a lista de erros
corrigidos.

Rita Farinha (Nov. 2009)



Maria Amalia Vaz de Carvalho


PELO MUNDO FÓRA


LISBOA
Livraria de Antonio Maria Pereira--editor
_50, 52--Rua Augusta--52, 54_
1896




PELO MUNDO FÓRA




Maria Amalia Vaz de Carvalho


PELO MUNDO FÓRA


LISBOA
Livraria de Antonio Maria Pereira--editor
_50, 52--Rua Augusta--52, 54_
1896




LISBOA
Typographia e Stereotypia Moderna
_II--Apostolos--II_
1896




I


Não ha de certo ninguem, por pouco imaginativo e pouco phantasista que
seja, que não tenha architectado um complicadissimo e alegre sonho
dando-lhe por base o _prazer das viagens_. Aos homens é o interesse de
visitar cousas novas, de experimentar sensações mais vivas, que os
attrahe e chama; ás mulheres é o amor do desconhecido que lhes irrita a
insaciavel curiosidade.

Imaginamos todos que a ventura está justamente... onde nós não estamos.
E que seria facil conquistal-a, indo em demanda d'ella um pouco longe,
em um logar d'onde ella nos sorri, d'onde ella nos acena, cariciosa...
traiçoeira.

Eu cedi tambem á estranha, á irresistivel suggestão. Fui-me por esse
mundo fóra em busca do pomo d'ouro, que tantas vezes se parece com
aquelle fructo colhido em terras da Palestina--mimo e velludo por fóra,
cinzas escuras no interior.

Era bem natural que, para mim tão profundamente modelada pelo espirito
da França, o primeiro objectivo fosse a terra onde a civilisação
franco-latina se resume em synthese deslumbradora.

Chamava-me Paris. E Paris não era, já se vê, a cidade luxuosa e alegre
do _boulevard_, a cidade da permanente festa, do prazer que se elabora
de todos os requintes de uma decadencia, da phrenetica aspiração ao gozo
material da vida.

Paris era a terra sagrada d'onde brotára para a especie humana a
primeira scentelha da Liberdade.

Paris era a patria, pelo menos moral--d'aquelles espiritos de que a
minha alma colhêra, n'um vago extase fecundante, a flôr maravilhosa e
inspiradora.

Todos os que eu intellectualmente mais amára tinham ido alli receber a
consagração suprema da gloria ou da desgraça, ás vezes de ambas ellas.

Eram, no grande seculo classico, Pascal, Racine e Molière; eram, na
soberba Renascença franceza, Rabelais e Montaigne; eram depois, n'esse
seculo XVIII hoje tão calumniado, mas sempre tão grande, e que tão
indomitas energias acordara na alma do homem, Rousseau com a sua morbida
sensibilidade de ambicioso e de revoltado, que nós hoje comprehendemos
tão bem; era Voltaire, a sã ironia hoje desdenhada, mas que tão benefica
acção exerceu na treva do espirito humano; era Diderot, o profundo
precursor de todas as modernas theorias criticas, o homem que no seu
tempo moveu maior numero de idéas novas e suggestivas; era a pleiade
formidavel e fascinante da Revolução, a que na minha mocidade me dera
sensações de tão absoluto assombro, a que, desde Turgot e Mirabeau até
Robespierre, refizera em novos moldes o mundo moral e o mundo politico;
era, na cumiada mais alta e mais luminosa da montanha da Historia, essa
grande figura immortal, o Alexandre do seculo XIX, o heroe de Homero, o
phrenetico conquistador, que empobreceu talvez a França, que dizimou as
populações e crucificou as mães e as noivas, que sangrou do seu melhor
sangue as nações e as raças, mas que imprimiu na sua patria o cunho
epico, inapagavel, inolvidavel, com que ella ainda hoje espanta e
assombra o espirito dos estrangeiros! Parece dos tempos lendarios e é de
hontem esse homem soberbo e fatal--em cujo olhar profundo ha
reverberações do Olympo, e cuja fronte pensativa fez parar embevecidos,
silenciosos, os mais impassiveis e os mais frivolos--cuja figura nós
topamos a cada passo na Capital do Mundo.

Modernamente, quantos outros me chamavam, ainda mais queridos ao meu
coração, ainda mais intimamente e estreitamente identificados com todas
as recordações mais doces da minha vida intellectual... Era Michelet, o
poderoso encanto allucinante; era Balzac, a vida intensa que pullula em
creações immortaes; era Renan, a graça emballadora, ondeante e morbida,
que anesthesia e faz sonhar; e Taine, o vigor soberbo da idéa servido
por um temperamento possante de artista e de poeta, um Spinosa que
tivesse o pincel do Veronez para traduzir as visões do seu pensamento
altissimo; era Musset, o divino; era Sand, e Sainte Beuve, e Hugo, e
Lamartine: e cada um me attrahia por um lado ou por muitos lados da sua
sensibilidade e do seu genio, e cada um me dizia a palavra magica que
faz parar, suspenso, embevecido, um espirito de poeta e de artista,
humilde embora...

Eram mais, eram muitos mais, todos lidos, todos decorados com
enternecimento e apaixonado enlevo. Eram os que eu sempre amei desde que
abri os olhos d'alma, e a quem devo os prazeres mais ardentes, mais
refinados ou mais subtis da minha vida interior.

Todos alli me chamavam--côro de mortos que eu tinha a louca illusão de
encontrar ainda. Parecia-me que o sorriso aberto e expansivo do pae
Dumas havia de accentuar-se sympathicamente ao encarar com o meu
assombro extatico; que a voz mordente de Voltaire se amolleceria para
acolher em mim a mais fervente enthusiasta do espirito francez; que
Beaumarchais me contaria, entre risonho e caustico, uma nova travessura
de _Figaro_, uma nova paixão de _Cherubin_; que Molière, descendo do seu
pedestal marmoreo, me diria ao ouvido uma d'aquellas profundas reflexões
satyricas que elle não poupára ás _bas-bleus_ do seu tempo!

Para mim confundiam-se n'um cahos allucinante as épocas, os seculos, os
periodos historicos.

O meu humilde espirito colhêra apaixonadamente scentelhas soltas de
todos esses espiritos; a minha memoria guardava reverente, em relicario
precioso, perfumes vagos de todas essas essencias raras! Amara-os tanto!
Sonhara-os tanto! O scenario onde elles se tinham movido interessava-me
tão profundamente!

Oh! Balzac ia decerto contar-me a historia, para elle _real_, das suas
elegantes e pallidas heroinas; elle que era forte e bom, compadecido da
minha pequenez, não duvidaria apresentar-me a esse mundo mais humano,
mais verdadeiro que o outro em que tanto á vontade sabia mover-se.

A viscondessa de Beauseant, a espirituosa e aristocratica rainha do
_faubourg_, aquella que amára tanto um portuguez, e que tivera no seu
abandono uma dignidade tão gentil e uma attitude de tão romanesco
encanto, ao vêr-me patrocinada pelo seu grande artista, far-me-hia o que
fez a Eugenio de Rastignac: proteger-me-hia, introduzir-me-hia,
carinhosa e maternal, no circulo estreito, exclusivo, selecto onde
viviam as suas eguaes.

Então, n'este ponto do meu sonho galopante, mais rapido que o trem que
me levava, mais vertiginoso que o scenario mudavel que me envolvia, eu
deixava o mundo da realidade sempre limitado, sempre condicional e
sempre estreito, por outro amplissimo, fascinador e deslumbrante.

A multidão prestigiosa das figuras de Balzac cercava-me n'uma especie de
circulo encantado. Todo o sortilegio poderoso com que esse grande
artista--o Napoleão da litteratura--actuou sobre o nosso tempo, descia
sobre o meu cerebro, excitava-o, estimulava-o perigosamente.

Todos os meus gostos de observadora achavam alli a sua satisfação plena.
Esquecia, n'esse mundo de tão frisante _realidade_, de tão intensa vida,
tudo que o mundo actual tem de nauseante e de triste...

De resto, Nucigen, o formidavel banqueiro da _Comedia humana_, é bem
mais assustador que Reinach e que todos os judeus modernos da Columna da
Bolsa; Vautrin tem um porte épico de criminoso que deixa a perder de
vista Cornelio Herz, ou Arton; de Marsay, esse personagem que é de
Balzac como Hamlet é de Shakespeare, como Tartufo é de Molière, como D.
Juan é de Byron, é um politico, um diplomata, um perverso das altas
cumiadas sociaes, bem superior a Rouvier, a Clemenceau, aos pobres
pygmeus da terceira Republica; Lousteau, Claude Vignon, Emilio Blondet,
Nathan, os principes do jornalismo, os grandes criticos e os
manipuladores de _successos_ ou de derrotas litterarias, não podem
realmente comparar-se ao sr. Mayer, ao sr. Magnard, ao proprio sr.
Rochefort.

E que pleiade encantadora de artistas e de sabios! Que lindas figuras
luminosas de pintores, de esculptores, de romancistas, de pensadores!
D'Arthez! Joseph Bridau! Camille Maupin! Leon Giraud! Fulgence Ridal!

Em Miguel Christien transparece a integridade rigida, a consciencia
admiravel, a fogosa independencia de Armand Carrel; em D'Arthez a bella
alma, a vida modesta e simples, a magnificencia intellectual de um
Berryer...

E todos desfilavam ante os meus olhos offuscados, os cinzeladores da
palavra, os manejadores soberbos ou do escalpello que abre as entranhas
humanas para extrahir d'ellas o segredo da vida, ou do pincel que rasga
janellas de luz para o azul, para o Ideal! Os mestres da sciencia e da
arte, os grandes typos que constituiram essa sociedade imaginaria da
obra de Balzac, reflexo idealisado da outra que elle frequentava e
conheceu tambem.

Ao pé d'esse agrupamento sublime de figuras que o genio creou, e que
illuminam o talento, a gloria, a ambição ou a desventura, que ora se
contorcem como os personagens que Miguel Angelo pintou nos seus frescos
soberbos, sob o influxo de uma dôr tremenda, ora sorriem olympicamente,
como os retratos do Ticiano, surge uma legião adoravel de mulheres, em
quem a graça indefinivel da parisiense se allia ao eterno mysterio da
poesia feminina, mulheres que se vestem como duquezas modernas, e
sorriem, enygmaticas e suggestivas, como a Monna Lisa, eternamente
indecifravel, do pintor florentino.

Mulheres que sabem _ouvir_, que sabem comprehender, e julgar, e
consolar, e amar; mulheres que, sendo perversas, teem o encanto
diabolico da princeza de Cadignan e de Mme.



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